Partir mais uma vez

Nascer do sol em África

Enfim, aqui estou eu pela segunda vez em um avião que deixa para trás Moçambique. Foi uma despedida singela, um dia normal, jantar em casa, com alguns amigos, mas não todos. Afinal, em breve vamos nos ver de novo.

O caminho já não parece tão distante. E dessa vez é mesmo menor, sendo que, sem o Otto, não preciso ir via Lisboa. E para pequenas temporadas o Otto pode sempre ficar em casa, tranqüilinho, feliz à minha espera.

A curta estadia também me faz suportar melhor as diferenças que me incomodam e diminui as probabilidades de cenas com as quais eu não sei conviver, como um guarda a pedir dinheiro porque tem fome ou o fato do governo ter aplicado esse ano um aumento significativo (e necessáario) no salário mínimo e algumas empresas onde eu perguntei ainda não estarem praticando. E provavelmente não vão praticar.

Mas a distância de alguns meses fora também ajudou a perceber melhor as mudanças positivas que se deram, como já contei no texto Mudanças acontecem. Devagar… Enfim, acho que encontrei uma fórmula boa para conviver e contribuir com Moçambique: nunca deixá-lo, mas não ficar imersa por muito tempo.

Neste vôo de volta, o que me acompanha é a sensação de que Moçambique não me pertence mais, mas que parte de mim sempre vai pertencer a Moçambique.

Para onde vão os europeus?

A crise econômica na Europa tem provocado alguns fenômenos interessantes na relação daqueles países com o mundo emergente e até o nem tanto. No Brasil, vimos a reação dos espanhóis quando nós anunciamos a aplicação da regra de reciprocidade para entrada de visitantes da Espanha. Afinal, diversos brasileiros estavam sendo barrados para entrar naquele país se não tivessem comprovação de recursos financeiros mínimos, local para estadia e passagem de volta. Tudo que o Brasil passou a fazer foi exigir o mesmo. Teve gente que falou: bobagem, deixa os espanhóis entrarem aqui. Não concordo. Se não podemos entrar lá, porque vamos abrir as portas e o coração para uns falidos metidos? Reciprocidade neles!

Agora, em Moçambique, estou a ver com meus próprios olhos um fenômeno que alguns amigos já tinham comentado: todos os dias chegam mais e mais portugueses tentando um lugar ao sol africano. Nos três primeiros meses de 2012 chegaram 2.500 portugueses só em Moçambique. Ê, pá! Mas afinal, que a terra subdesenvolvida parece estar melhor que a deles…

Na Europa já não há dinheiro nem empregos. Na África falta mão-de-obra qualificada, especializada em demandas modernas. Aí que os filhos da terra, que tiveram que sair quando da independência de Moçambique nos anos 70, estão agora a regressar, a vir ter aqui o que já não conseguem em terras de colonizadores.

Particularmente, acho bonita a mistura de gentes e acho saudável a troca de experiências e culturas. Só me preocupa quando vejo portugueses que aqui chegam cheios de preconceito, a reclamar dos diferentes hábitos de higiene (ou falta deles), educação e habilidades de raciocínio de alguns moçambicanos, como se de onde vêm não existissem pessoas com as mesmas dificuldades.

Reclamam por tudo e por nada, sem considerar que o diferente pode ser também certo, sem levar em conta diferenças culturais e, ainda, esquecem-se que seus antepassados, quando aqui chegaram contribuíram para deixar o povo moçambicano em tais condições, depois de séculos de dominação, a subjugá-los, humilhá-los e dar a eles maus exemplos. Que venham, mas não para isso de novo. Percebam que agora o que podem querer é uma parceria com os moçambicanos para todos crescerem juntos e aproveitarem as vantagens dessa terra maravilhosa.

Após escrever esse texto, li um e-mail que recebi da amiga e fiel leitora do Mosanblog Lucia Agapito, creditado ao escritor Isaac Asimov. O texto pode nem ser dele, como muitas vezes acontece nas coisas que circulam na internet e, dado ao precário acesso à internet que os dias cheios em Maputo têm me deixado, não fiz a pesquisa. Mas isso não é o mais importante e sim o conteúdo, que cabe bem para situações que vejo no dia a dia em Maputo: pessoas que não percebem a existência de diferentes inteligências e habillidades e se consideram superiores aos outros sem perceber que há muitas coisas que esses outros fazem e elas não seriam capazes. Será um melhor que o outro ou estamos todos aqui para nos completar?

Afinal, o que é inteligência?

Quando eu estava no exército, fiz um teste de aptidão, solicitado a todos os soldados, e consegui 160 pontos. A média era 100. Ninguém na base tinha visto uma nota dessas e durante duas horas eu fui o assunto principal. (Não significou nada – no dia seguinte eu ainda era um soldado raso da KP – Kitchen Police).
Durante toda minha vida consegui notas como essa, o que sempre me deu uma idéia de que eu era realmente muito inteligente. E eu imaginava que as outras pessoas também achavam isso.
Porém, na verdade, será que essas notas não significam apenas que eu sou muito bom para responder um tipo específico de perguntas acadêmicas, consideradas pertinentes pelas pessoas que formularam esses testes de inteligência, e que provavelmente têm uma habilidade intelectual parecida com a minha?
Por exemplo, eu conhecia um mecânico que jamais conseguiria passar em um teste desses, acho que não chegaria a fazer 80 pontos. Portanto, sempre me considerei muito mais inteligente que ele. Mas, quando acontecia alguma coisa com o meu carro e eu precisava de alguém para dar um jeito rápido, era ele que eu procurava. Observava como ele investigava a situação enquanto fazia seus pronunciamentos sábios e profundos, como se fossem oráculos divinos. No fim, ele sempre consertava meu carro.
Então imagine se esses testes de inteligência fossem preparados pelo meu mecânico. Ou por um carpinteiro, ou um fazendeiro, ou qualquer outro que não fosse um acadêmico. Em qualquer desses testes eu comprovaria minha total ignorância e estupidez. Na verdade, seria mesmo considerado um ignorante, um estúpido.
Em um mundo onde eu não pudesse me valer do meu treinamento acadêmico ou do meu talento com as palavras e tivesse que fazer algum trabalho com as minhas mãos ou desembaraçar alguma coisa complicada eu me daria muito mal.
A minha inteligência, portanto, não é algo absoluto mas sim algo imposto como tal, por uma pequena parcela da sociedade em que vivo.
Vamos considerar o meu mecânico, mais uma vez. Ele adorava contar piadas. Certa vez ele levantou sua cabeça por cima do capô do meu carro e me perguntou: “Doutor, um surdo-mudo entrou numa loja de construção para comprar uns pregos. Ele colocou dois dedos no balcão como se estivesse segurando um prego invisível e com a outra mão, imitou umas marteladas. O balconista trouxe então um martelo. Ele balançou a cabeça de um lado para o outro negativamente e apontou para os dedos no balcão. Dessa vez o balconista trouxe vários pregos, ele escolheu o tamanho que queria e foi embora. O cliente seguinte era um cego. Ele queria comprar uma tesoura. Como o senhor acha que ele fez?”
Eu levantei minha mão e “cortei o ar” com dois dedos, como uma tesoura.
“Mas você é muito burro mesmo! Ele simplesmente abriu a boca e usou a voz para pedir”.
Enquanto meu mecânico gargalhava, ele ainda falou: “Tô fazendo essa pegadinha com todos os clientes hoje.”
“E muitos caíram?” perguntei esperançoso.
“Alguns. Mas com você eu tinha certeza absoluta que ia funcionar”.
“Ah é? Por quê?”
“Porque você tem muito estudo doutor, sabia que não seria muito esperto”.
E algo dentro de mim dizia que ele tinha alguma razão nisso tudo.
(tradução livre do original “What is inteligence, anyway?”)

Sucesso moçambicano

Há cerca de um ano eu deixava a direção da Academia de Comunicação, sediada em Maputo. A escola já estava a andar bem, os funcionários estavam treinados, era tempo do dono moçambicano assumir a direção e impor seu método de gestão.
Alguns meses depois, eu deixei Moçambique e, apesar de manter contato com algumas pessoas, não pude bem acompanhar tudo. Afinal, a distância é grande e a comunicação é difícil.

Estou de volta a Maputo pela primeira vez desde então. E para minha felicidade, em três dias aqui, encontrei três ex-alunos da Academia de Comunicação, cujas histórias muito me marcaram.

Hamina chegou na escola com muita vontade e determinação, com boa argumentação, mas com uma certa timidez que insistia em prevalecer sobre sua capacidade comunicativa. Chegou também quase sem dinheiro. Foi à minha sala tentar uma negociação. As inscrições para o curso de Técnicas de Reportagem estavam a encerrar e ela teria dinheiro só em alguns dias, mas queria muito fazer tal curso. Ela tinha alguns Rands (moeda da África do Sul), que propôs deixar como caução e em dez dias pagaria todo o valor em metical, como tinha que ser.

Naquele momento, percebi ali um talento e uma história verdadeira. Eu já tinha ouvido muitas e tinha sido obrigada a falar muitos nãos. Contra ela ainda tínhamos o fato do curso escolhido ser um dos mais caros. Afinal, Técnicas de Reportagem seria como um mini curso de jornalismo, um Jornalismo Básico de qualquer universidade. Ou seja, era um curso robusto e muito importante. Ao fim, Hamina conseguiu um acordo e em alguns meses concluiu o curso.

Outro dia chegou à escola o pai de um pretendente a aluno e pediu para falar comigo. Ele tinha visto a propaganda que eu fazia na televisão e achou que estava ali o futuro do filho. Mas ele não tinha dinheiro naquele momento, porque precisaria fazer um empréstimo no banco para conseguir o valor. As aulas já iam começar e ele me pediu uns dias para trazer o dinheiro, sem prejuízo da presença do Zefanias no curso de edição de vídeo. Esse era um curso muito procurado, o professor era Orlando Mesquita, um dos mais respeitados (senão o mais) profissionais da área em Moçambique. Se Zefanias começasse o curso e não pagasse, eu teria perdido uma vaga que com certeza seria preenchida por outro. O pai me mostrou o crachá do trabalho para me dar confiança e foi de uma sinceridade que me convenceu. Antes de vencer o prazo que eu tinha dado a ele para pagar ou o filho não poderia continuar o curso, veio me visitar a mãe do Zefanias. Trouxe um envelope cheio de notas. O empréstimo saíra e eles estavam a pagar o curso todo sem parcelar.

Então, veio o Hermenegildo. Fez a matrícula e começou as aulas, colega de Hamina, no curso de Técnicas de Reportagem. O professor do curso era Ricardo Botas, experiente jornalista sênior, ótimo professor, mas com uma didática bastante diferente da tradicional à qual os moçambicanos estão acostumados. Hermenegildo deu trabalho. Na primeira semana queria o regulamento interno da escola. Por ser uma escola muito nova, o regulamento ainda estava a ser adaptado a algumas regras dos órgãos oficiais e não estava publicado. Era uma pendência que seria resolvida rapidamente. Mas, enquanto não foi, Hermenegildo batia à porta da secretaria quase todos os dias a pedir o documento.

Além disso, a didática pouco convencional do professor também foi motivo de questionamentos por parte do jovem. Mas eu via ali um perfil de alguém realmente capaz de ser um jornalista como poucos há em Moçambique: questionador, independente, ousado. Driblamos as dificuldades com ele até o final de todos os módulos e o jovem conseguiu seu certificado.

Agora, ao retornar a Moçambique, encontrei Hamina. Uma outra mulher. Quase não a reconheci. Mais forte, com a cabeça erguida, feições confiantes. Trazia consigo alguns exemplares do jornal Público, para o qual escreve regularmente, às vezes mais de uma matéria na mesma edição, várias assinadas.

Junto com Hamina, estava o colega Hermenegildo. Com este eu havia mantido algum contato, porque ele, depois de formado na Academia, me tinha sido indicado pelo professor Ricardo para um trabalho de pesquisa que eu faria e continuei a fazer a partir do Brasil. Então, troquei alguns e-mails com ele nesse tempo. Sabia que ele tinha conseguido vaga em um jornal de esportes, onde recebia até um bom salário. Infelizmente, há algumas semanas o jornal fechou. Agora, está a dar aulas de português e tem a certeza que outros jornais virão. Eu também.

Depois, fui visitar uma importante produtora de vídeos estabelecida em Maputo e encontrei Zefanias trabalhando, como profissional do quadro da empresa. Fiquei muito feliz em ver que o sacrifício do pai dele foi compensado. Eu me sentia responsável, não só pelo fato de ser a diretora da escola, mas por ele ter insistido que eu o convencera com a propaganda na televisão e por ele ter precisado fazer um empréstimo ao banco para conseguir garantir o estudo do filho. Tudo isso ficou pequeno diante do grande caminho que Zefanias está seguindo.

Tenho certeza que esses três exemplos que encontrei nesses dias são apenas alguns de muitos que tiveram suas vidas encaminhadas para o difícil mercado de trabalho de Moçambique, a partir da passagem deles pela Academia de Comunicação, uma empresa 100% moçambicana.

matéria pescado
Matéria de Hamina Lacá no jornal Público de 16 de abril de 2012, onde ela conta como mudanças climáticas podem estar causando escassez de pescado em Maputo e afetando toda uma comunidade

Mudanças acontecem. Devagar…

Um dos blogs que eu mais gostei de conhecer quando vivia Moçambique e em Moçambique foi o Devagar… A gaja para além de escrever muito divertidamente, pegou bem o espírito da vida aqui e sabe traduzir como ninguém as sensações de quem se vê obrigado a viver em um outro tempo. Eu mesma também tentei em alguns textos mostrar o conflito de quem está a andar num ritmo diferente dos outros e minhas tentativas de me adaptar, o que, até certo ponto, consegui bem.

Agora, chegar a Moçambique depois de meio ano é interessante porque fez perceber mudanças que talvez nem notasse no dia-a-dia, justamente por causa da velocidade mínima na qual elas acontecem.

As ruas continuam sujas, muito sujas, com o vento provocando rodamoinhos de plásticos pretos e poeira que se enroscam em suas pernas enquanto você anda pela cidade. Os artesãos continuam a te seguir pelas ruas, a pedir para comprar qualquer coisa e ao final a te oferecer tudo que têm nas mãos pelo preço inicial de uma peça, para poder ter algum metical para almoçar. A internet continua lenta, bem lenta, e cara, muito cara. As novelas brasileiras continuam a dominar a televisão local e os assuntos nos salões. A rede de celular a toda hora está busy (ocupada). O movimento nas ruas é muito, uma leva de desempregados com fome a vender crédito de celular, tomates, bananas, roupas usadas, na tentativa de movimentar um pouco a economia e garantir a sobrevida. As gambiarras da empresa de energia de Moçambique (EdM) estão por toda parte e alguns postes ainda “ardem” quando começa a noite e o maior uso de energia nas casas.

Mas houve mudanças. Ao entrar no país, minha mala chegou no mesmo vôo que eu, não foi aberta na alfândega, eu passei na imigração tranquilamente e entrei no país sem gastar nenhum dinheiro a mais do que estava previsto nas regras. A obra de reabilitação do Mercado Central de Maputo, que começou pouco antes de eu partir está quase pronta e as barracas, que tinham sido transferidas para a área externa do mercado, em breve vão estar de volta ao pátio interno renovado. Tudo dentro do prazo previsto. Há aqui e ali alguns pontos de internet wi-fi que até funcionam nos cafés e principais jardins de Maputo. Os preços de alimentos e transporte não tiveram alta significativa, especialmente, os de primeira necessidade.

As mudanças acontecem. Talvez mais visíveis para quem se afastou por um tempo, porque são devagar, mas acontecem.

Published in: on 03/07/2012 at 11:38  Comments (6)  
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A primeira vez da portuguesa

É sempre divertido ver as pessoas passarem por situações de aperto às quais nós já superamos. Especialmente, se conseguimos rir de nós mesmos quando passamos por tais situações.

Quando cheguei em Maputo agora, minha amiga Sandra estava a me esperar no aeroporto e com ela estava uma portuguesa que chegara minutos antes. A nossa diferença com relação à Moçambique é que eu tinha estado aqui em 2010 e 2011 e ela, apesar de ter nascido em Moçambique, saiu ainda criança e nunca mais voltou.

Assim, ela vai agora explorar um lugar que eu já conheço bem. E vai ter que viver algumas situações semelhantes às que vivi. Por exemplo, é impossível não lembrar como foi minha adaptação à direção com a mão inglesa no trânsito.

Escrevi até os textos Conduzir na mão inglesa não é fácil e Estamos todos ilesos sobre o assunto, afinal, foi um momento marcante para mim. Pois não é que a portuguesa, muito mais corajosa que eu, em seu segundo dia aqui, já se colocou a conduzir? E pegou logo uma pick-up, tamanho muito grande, com marcha manual.

Eu nem tinha me orientado ainda na vida por conta do fuso-horário e da viagem de mais de 15 horas de um dia antes e me aventurei no carro ao lado dela. Primeira viagem e fizemos logo o trajeto Maputo – Matola (cidade vizinha a cerca de 20 quilômetros), no fim da tarde, hora de pico no trânsito.

Vamos lá.

Mas não é que ela se saiu muito bem? Claro que o braço direito bateu na porta do carro umas duas ou três vezes, a procura da marcha. Na primeira vez que isso aconteceu, lembrei logo de uma das coisas que o instrutor da auto-escola mais falava nas aulas que fiz antes de me arriscar sozinha no trânsito (sim, sou desse tipo covarde…): “Quando pegas um carro para conduzir do lado contrário, tens que prestar muita atenção no tamanho carro”.

É muito difíci quem dirige à mão francesa, quando pega um carro à mão inglesa, conseguir perceber seu tamanho para a esquerda, perceber onde termina o carro ao lado do passageiro. Isso é, de fato, uma das coisas mais complexas, porque é fazer seu cérebro ter uma percepção espacial contrária a que está acostumado e é um exercício difícil perceber logo as dimensões do veículo.

Alertei para minha mais nova amiga sobre a importância de estar atenta ao espaço que o carro ocupa à esquerda. Parece que graças à lembrança de alertar isso, não levamos nenhum espelho de carro alheio para casa.

Outra coisa que vi muito no trajeto foi o uso do limpador de pára-brisas. Não, não chovia. Mas a confusão entre a alavanca das setas e a do limpador de pára-brisas é certa. Não conheço uma pessoa que tenha pego carro em mão contrária que não passou por isso.

Também houve a graça de uma destra se sentir fraca para trocar a marcha com a mão esquerda e a dificuldade de entender como arranjar os espelhos.

Mas, fora isso, que considerei mais que normal, e colocando a favor dela estar no segundo dia no país… acho que ela já não oferece perigo nas ruas de Moçambique. Aliás, está a merecer parabéns pela coragem e ousadia.

O outro alerta valioso que dei a ela, depois dos parabéns, foi para tomar muito cuidado a partir do momento que estiver a se sentir confiante. Porque também é muito comum, nessa hora, já tranqüila a achar que domina tudo, entrar na contra-mão e só se dar conta quando vier um carro na sua direção. Fica a dica.

De volta

Visitar um lugar ao qual você já pertenceu é sempre uma surpresa. Na preparação da viagem e durante o percurso Brasília – Maputo, eu sempre me pegava pensando como seria chegar aqui novamente, depois de mais de seis meses. A resposta: foi fácil como voltar para casa.

O curioso é que quando se vive em muitos lugares a casa vai sendo sempre um pouco de cada um, o que mais gostamos de cada um… assim é Maputo, cheio de coisas que gosto muito. Amigos, lugares, hábitos, comidas, pessoas desconhecidas que geram empatia só por te olhar.

Passar pela imigração e falar meu primeiro kanimambo (obrigada em changana) depois de meses, foi divertido. Achei graça até nos jovens nas ruas vendendo de tudo, como corrente com coleira para cães, mas “que também pode ser para o marido”, como sugeriu o vendedor. E se você não quer a coleira, tem o spray para não sei o que, o triângulo para carro, o macaco para trocar pneu… de tudo. O importante é você deixar com ele uns meticais para o almoço. “Tenho fome, patroa”.

E agora lá vou eu, procurar um menino de colete amarelo, que há em cada esquina, para comprar dele crédito para o celular e poder fazer contato com os amigos, avisar que cá estou. E sei que vou engrenar na conversa com o vendedor, saber de que província vem, que vida leva, quais seus sofrimentos. Assim é Moçambique. As pessoas – até as menos sociáveis – estão sempre a se relacionar, a conversar, a não perceber o tempo passar.

Por outro lado, é curioso ver a vida aqui com distanciamento, não sendo mais parte, não sendo mais peça da engrenagem. De certa forma, te impõe menos culpa, mas alguma urgência. A certeza de que vou ficar por pouco tempo, dá a sensação de que esse pouco tempo tem que render muito. Fazer o máximo para contribuir com quem cruzar o meu caminho. Mas já tem outra certeza que marca esse primeiro retorno a Moçambique: a de que é apenas o primeiro. Outros, muitos, virão.

Fim?

folhas no chão no jardim dos professores junho 2011

Os primeiros seis meses foram de encanto. O segundo semestre foi de choque cultural (sim, por mais estranho que seja, o choque se deu tempos depois). O terceiro semestre foi de desconforto*.
Era tempo de pensar em ir embora.

O Mosanblog não será o primeiro nem o último com vida curta. Muitos dos blogs que venho freqüentando desde antes de minha passagem pela África são assim. As pessoas criam o espaço para dividir com o mundo suas impressões desse continente mágico e suas impressões são, muitas vezes, por períodos curtos. Alguns, mesmo depois de deixarem a África, continuam seu trabalho de divulgação. Outros não. Acho que o Mosanblog vai se enquadrar na segunda categoria.

Mas vai continuar no ar, para servir de pesquisa a todos que se interessam pelo assunto. Pelo menos essa é minha intenção, até enquanto o WordPress permitir. Sempre que possível procurei incluir citações, referências e links nos textos, para que as pessoas interessadas em aprofundar seu conhecimento sobre o tema tenham essa oportunidade. Acho que isso é importante, especialmente pela pouca (e, às vezes, equivocada) divulgação que temos normalmente da África.

E devo dizer que, ao visitar as estatísticas do blog, na área administrativa, nada me dava mais alegria do que perceber que quando os diferentes mecanismos de busca da internet direcionavam as pessoas para o Mosanblog, elas encontravam de fato a resposta que procuravam.

Nesse período tanta coisa aconteceu que parece terem sido décadas e não anos. Em Moçambique, assisti a casamentos, despedidas dos mortos, aniversários, celebrações de datas cívicas, rituais… Trabalhei com públicos muito diversos, e tudo isso enriqueceu bastante minha experiência.

O Eduardo fez muita matéria interessante, nos ajudando a conhecer e entender um pouco mais desse mundão que fica sempre tão escondido dos outros continentes. O Guilherme deixou a marca dele por muitos lugares, inclusive no cardápio do Coisa Nossa, que agora tem o Sandes Guilherme. E o Otto passeou por lugares e viu coisas que jamais um cãozinho nascido no meio do cerrado brasileiro poderia sonhar.

Foi muito bom também acompanhar a interação entre os leitores. Muitas vezes, pessoas que eu sei não se conhecerem, trocaram idéias de forma tão leve e descontraída que pareciam todos amigos, participantes de uma confraria qualquer… a confraria dos que se relacionam com África, talvez.

Desde o início do Mosanblog, foram oferecidas mais de 300 colheres de ração para cães que sofreram maltratos, por meio de respostas às pesquisas da Socialvibe, aqui na lateral direita do blog. E espero que os leitores continuem contribuindo com mais cliques, uma vez que o blog vai continuar no ar.

Foram 374 textos publicados. Entre eles, 73 Quintas Quentes, onde ouvimos música de 19 países africanos e também de brasileiros que cantaram a África e na África.

Fico pensando agora no que vou encontrar no retorno ao Brasil (para onde estou a caminho nesse momento) e me vem a certeza de que não vou encontrar nada como estava antes de eu partir, porque, afinal, eu que volto já não sou a mesma.

A verdade é que foi pouco tempo para perdermos as referências, mas também foi tempo demais para as mantermos inalteradas. Era algo que eu precisava viver e agradeço por ter vivido.

* O desconforto foi causado por situações como as descritas na série De como os mulungos sofrem e nos textos Será que paguei propina? e Casei com Moçambique.

De como os mulungos sofrem (3)

Este post conta uma história que acabou em 29 de agosto. Conto ainda que com um pouco de atraso, porque acho que é informação importante para quem vai ainda passar pelo mesmo. É a história de meses para se obter a renovação do DIRE: Documento de Identificação de Residente Estrangeiro.

O documento é feito no departamento de imigração e sofreu algumas alterações nos anos que estamos aqui. Quando chegamos era manual. Colocava-se um selo (com um carimbo, claro) e à mão se preenchia dados como a validade. Uma assinatura do funcionário do departamento e pronto. Custava MT 4.000,00, se não me falha a memória.

Em meados de 2010, o processo foi modernizado. O DIRE passou a ser um cartão, semelhante ao bilhete de identidade moçambicano, feito eletronicamente em uma empresa. O departamento de imigração só faz pegar a documentação e encaminhar para a empresa que emite o cartão. O valor subiu, em um primeiro momento, para MT 24.000,00. Como houve muita chiadeira conseguiram baixar e passou a MT 19.000,00, sendo que para os países membros da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) ficou em MT 14.400,00.

O custo é mais alto, mas o documento é mais eficiente e mais seguro, o que é extremamente positivo. No entanto, nem todos ficaram satisfeitos… pessoas que trabalham em determinadas salinhas no prédio da imigração ficaram desnorteadas. Antes, suas salas (onde há sempre só uma mesa, para um só funcionário em cada sala) eram sempre visitadas por pessoas que, por uma razão ou por outra, queriam o DIRE sem passar pela burocracia, espera, demora, fiscalização de documentos, etc. etc. etc. A solução estava ali: o funcionário pegava o selo, colava no passaporte, carimbava, preenchia… e quem diria depois que não foi feito tudo como tinha que ser?

Agora já não é assim. Aquele funcionário sozinho naquela salinha de uma só mesa já não pode tanto. Já não é apenas dele que depende o processo. O selo, o carimbo, a assinatura transformaram-se em uma empresa. Não digo que não haja já um esquema da própria empresa para vender DIREs a quem os quer de forma fácil. Mas os envolvidos serão outros. E aqueles que já não estão mais no esquema (pelo menos nesse primeiro momento), estão perdidos. E tentam encontrar outras formas, outros esquemas, desesperadamente…

Quando meu DIRE estava para vencer, dei entrada nos papéis e paguei o valor que me foi informado pelo caixa no balcão. O valor que ele me pediu foi MT 14.500,00. Eu já havia ficado na fila para tirar a fotografia para o documento por muito tempo, tempo que me pareceu ainda mais imenso no calor africano daquele subsolo repleto de gente de todo o mundo. Não havia no local nenhuma tabela de preços exposta. Quando ele, um funcionário público do Estado, falou o valor, entreguei o dinheiro, peguei o recibo e fui embora.

Recibo de 14400 pelo DIRE

Só em casa me dei conta que no recibo diz: MT 14.400,00. Fui lesada em MT 100,00. Já haviam me dito que no tal departamento não se dá troco. Tem que levar o dinheiro trocado ou deixar por lá o que sobrar. Mas eu não sabia que, com olhos de raio-X, o funcionário conseguiria saber que notas eu tinha na carteira e já me pediria o valor que eu pagaria. E, no caso, os olhos de raio-X se enganaram, porque eu até teria dinheiro trocado. Mas e agora? Voltar e dizer que fui enganada? Ele negaria e eu não teria como provar.

Tudo isso foi no dia 11 de maio de 2011. No recibo que me foi entregue dizia que a data para retirada (levantamento, por aqui) do documento seria 26 do mesmo mês. Quando comentei com alguns amigos, riram: “Quinze dias? DIRE? Êêê! Pode esquecer…”

Não esqueci. Dia 27 estava lá. Afinal, naquele momento meu DIRE estava vencido e o recibo que eu tinha em mãos também. Dizia nele que, a partir do dia 26 eu poderia levantar o novo DIRE. Não estava pronto. Então, pedi que o funcionário me entregasse novo recibo ou indicasse (com direito a assinatura e carimbo, claro) por escrito naquele recibo uma nova data. Eu já tinha visto, no primeiro dia que estive lá, uma senhora conseguindo isso. Mas eu só tinha visto o funcionário escrevendo nova data e ela saindo. Não sei como foi a argumentação dela…

Então, comecei a minha: “Quando um policial me parar na rua e pedir os documentos, vou mostrar um passaporte com DIRE vencido e um recibo que diz que eu deveria ter já levantado o novo DIRE. Então, peço que me entreguem novo recibo ou indiquem nova data nesse que tenho, para que o policial não diga que eu é que não vim cá levantar o documento”.

Pedido negado.

Tentei de novo, com um pouco mais de clareza na argumentação: “Meu sr., não preciso contar como são as coisas na rua por aqui… se o policial me parar nessa situação, não vai permitir que eu siga em frente sem me pedir dinheiro”.

Pedido negado com a contra-argumentação de que “os polícias todos sabem que o DIRE está atrasando, porque estamos com esse problema há meses e a chefia de polícia já foi avisada”.

Ainda mais clareza, já quase sem paciência: “Justamente porque eles sabem dessa situação é que andam a parar estrangeiros o tempo todo. Então, me dê o número do seu celular, porque quando o policial me parar eu ligo e o senhor explica a situação”.

“Êêê!? Meu celular? Vai me ligar de noite? Pra falar coisa de trabalho?”

“Se na hora de trabalhar não quer fazer seu trabalho…”

Enfim, a conversa virou discussão e quase saí presa por desacato ao funcionário público quando ele me olhou com aquele olhar e cheguei no nível de clareza de expressar, em tom mais alto do que ele desejava, o que eu achava que precisaria fazer ali para conseguir o maldito carimbo.

Saí sem a prorrogação do prazo oficial e a orientação para que eu voltasse daqui uma semana.

Tecnicamente, fiquei numa situação em que, ou dava dinheiro para o pessoal do balcão carimbar o protocolo e indicar uma nova data, ou dava dinheiro quando um policial me parasse na rua e identificasse que meu documento estava vencido.

Nesse dia, decidi sair do país.

Para minha sorte, nos três meses que durou a espera pelo documento que ficaria pronto em 15 dias não fui parada por nenhum policial. Para meu azar, todas as semanas voltei lá e todas as semanas não havia DIRE pronto e todas as semanas era para voltar na semana seguinte.

Desde que mudou o sistema do DIRE essa história tem se repetido com muitas pessoas. Todos estrangeiros com quem converso sobre o assunto esperaram pelo menos dois meses. A pergunta que fica é, por que, então, eles não dão um prazo mais largo para irmos retirar o documento?

Já contei no texto Descrença que tipo de oportunidade eu buscava quando mudei para Moçambique. Assim como muitas pessoas que aqui estão ou por aqui passaram, vim para contribuir, dar parte do que tinha, oferecer meu conhecimento. Mas não para entregar nada a quem me extorquisse. Ver o estrangeiro como alguém de quem se pode tirar algo, alguém que deve dar vantagem (à força) não é o melhor caminho.

Logo que cheguei, um amigo moçambicano, empolgado com meu conhecimento sobre reciclagem de resíduos sólidos, disse: “com essas informações que você tem, vamos mudar o país”. Eu acreditei, me empolguei com ele e por alguns meses vivi esse sonho. Até perceber que não havia tanto interesse assim na mudança. Afinal, como está, alguém ganha com isso. E esses alguéns não querem mudar o país, porque são pessoas gananciosas e sem limites. Eu não consegui apresentar minhas propostas para quem deveria, as empresas que conheci não colaboraram, o lixo continua nas ruas, as pessoas continuam sem renda, as matérias-primas virgens continuam sendo exploradas, mesmo quando há tanta para ser reciclada.

Os agentes que me atenderam no departamento de imigração, com seu comportamento, deixaram claro que não querem gente como eu em Moçcambique. Eles e outros que cruzaram meu caminho por aqui, como os guardas de trânsito do texto De como os mulungos sofrem (2) ou o agente do correio do texto Será que paguei propina? E como eu não preciso disputar espaço com quem não me quer no seu pedaço, deixo Moçambique. É verdade que com uma certa tristeza no coração por todos que me receberam bem.

Obs.: No meio do processo houve outros detalhes de taxas cobradas a mais e documentos desnecessários que foram pedidos para dificultar o processo na tentativa de se vender facilidade, mas o post já está grande demais e acho que passei o recado.

Praia do Bilene

No último fim de semana do Guilherme conosco em Maputo, deixamos que ele escolhesse o passeio que queria fazer. Ele, que adora o mar, escolheu conhecer a praia do Bilene. Era o fim do mês de julho, alto inverno, e eu logo vi que não ia dar praia… mas o entendimento adolescente do mundo é diferente do nosso e na cabeça dele praia era sinônimo de sol e calor. E como o aprendizado adolescente também é diferente, se não fôssemos, ele ia continuar pensando assim. Tem que ver para crer.

Também queríamos conhecer Bilene, praia tão falada por aqui. Vestimos agasalhos e partimos no sábado de manhã, pela Estrada Nacional número 1 (EN1), rumo ao norte. Até o Otto participou…

Passamos o limite da província de Maputo com a província de Gaza e seguimos na mesma estrada até a cidade de Macia, onde pegamos uma pequena estrada à direita, a qual percorremos por mais 30 quilômetros rumo ao Índico.

Esses cerca de 200 quilômetros são percorridos em estrada asfaltada, não duplicada, mas bem boa. No fim da estrada, após duas horas de viagem, a vila Bilene. A famosa praia fica em uma enorme lagoa de água salgada, a lagoa Uembje, que tem 27 quilômetros de extensão e é separada do Oceano Índico por uma estreita faixa de dunas.

Não deu praia. Mas o visual valeu tudo. Por causa da ventania forte típica da proximidade do mês de agosto por aqui, não ficamos muito na praia, mas almoçamos em um restaurante à beira mar e curtimos a bonita vista da enorme lagoa.

Nesse dia entendemos porque no verão tanta gente vai à praia do Bilene: facílimo acesso, água calma e visual maravilhoso, típico dos melhores pontos turísticos praianos do mundo.

praia do Bilene em julho de 2011

Mais sobre a praia do Bilene no blog Crónicas de Maputo, na Wikipedia e no portal do governo da província de Gaza.

Cenáculo da fé

Inaugurado em março de 2011, o Cenáculo da Fé, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), em Maputo, fica na avenida 24 de julho, 3.108, esquina com avenida Mohamed Siad Barre.

Fachada do Cenáculo da Fé em Maputo