Greve de ninguém

O governo de Moçambique anunciou que, a partir de hoje, as tarifas de água e luz teriam novos preços em todo o país. Também anunciou a previsão de aumento do preço oficial do pão e do chapa (van), nos próximos dias. Em seguida, mensagens de texto começaram a circular pelos celulares da capital do país, Maputo, anunciando uma greve para hoje, dia 1 de setembro. As mensagens chegavam de destinatários desconhecidos, informando que não haveria chapa trabalhando. Basicamente, é uma greve dos chapas, mas como esse é o principal meio de transporte aqui, as pessoas não chegam. Além disso, foram feitos bloqueios, nas principais avenidas que ligam a cidade de Maputo aos bairros da periferia. Quem tentou passar com carros privados, foi ameaçado e acabou voltando para casa.

Para mim, o estranho dessa greve é não ter liderança. Não há comando de greve, não há um momento em que as pessoas vão decidir se param ou continuam (nas mensagens que chegaram pelo celular não há informação se é um protesto de um dia ou se continua), não há reivindicações claras. Há revolta. Revolta de uma população sofrida e que se sente maltratada pelos seus representantes, que respondeu a um chamado de SMS (Short Message Service – Serviço de Mensagens Curtas) para protestar contra os aumentos não indo trabalhar. Quem quis ir trabalhar encontrou os bloqueios e confrontos com a polícia.

Moçambique tem aproximadamente 5 milhões de números de celulares ativos (o país tem cerca de 22 milhões de habitantes). E está neles o comando dessa greve. Saberemos no fim do dia e no começo da manhã se a manifestação se repete ou não. Saberemos, não pelos veículos de comunicação em massa, como rádio, TV e jornal, mas pelas mensagens que chegarão anonimamente em nossos telefones.

Aliás, por falar nos veículos de comunicação tradicionais, assim como no Brasil, aqui eles também estão precisando acordar para o novo momento que a comunicação vive. Não é mais possível agir com a crença de que as pessoas acreditarão no mundo apresentado por eles. Hoje temos a internet e o celular para nos mostrar o mundo real. Até as nove da manhã dessa quarta-feira (1 de setembro), a rádio Moçambique insistia em informar apenas que não havia nenhum comunicado oficial de greve nesta data. A essa hora os celulares já estavam quentes de tanto trabalhar. E as ruas também estavam quentes. Porque com ou sem anúncio formal, a manifestação aconteceu, os chapas não rodaram, as avenidas foram bloqueadas.

No jornal O País, a manchete da capa de hoje é “Água e luz com novos preços a partir de hoje em todo o país”. Logo em baixo, a chamada: “PRM diz que não recebeu pedido de manifestação”, onde PRM é a Polícia da República de Moçambique. No texto, o porta-voz do Comando-Geral da PRM, Pedro Cossa, afirma que, ao não terem realizado pedido de manifestação, os cidadãos interessados incorreram em erro e as forças da defesa e segurança agirão sobre qualquer tentativa de manifestação, para garantir a ordem e a tranqüilidade públicas. Desculpa lá, mas o povo tem que pedir licença para se manifestar? Parece que aqui tem. Há procedimentos legais para serem observados nesses casos. Estranho isso, porque as vias públicas, como diz o nome, são do público. As pessoas reúnem-se e expõem suas idéias. Se necessitar autorização, fica implícito que são idéias previamente aprovadas. Talvez o comando da PRM até tenha recebido alguma mensagem de SMS e não se atentou para a modernidade.

Mas, enfim, diferente do que consta em algumas estações de rádio e TV ou em alguns jornais, o povo foi às ruas. O triste é que muitos foram sem saber o que fazem lá. Se isso já acontece quando há um comando, assembléias, reuniões prévias… imaginem no caso de uma greve de ninguém, que acaba por ser de todo mundo. Houve saques, carros queimados, pessoas verdadeiramente desorientadas. Inclusive, muitas crianças estavam nessas manifestações. Consta até a triste notícia de que duas teriam sido baleadas e mortas, nos conflitos entre a população e a polícia.

Tudo isso, nos arredores de Maputo. Aqui mesmo, no centro da cidade, o que se passa, até o meio da tarde, é uma calmaria maior que a de feriados. Como as pessoas não puderam chegar, o comércio não abriu e as ruas estão apenas com carros estacionados, de quem mora por aqui.

avenida 24 de julho sem carros a circular

Uma das mais movimentadas avenidas de Maputo, a 24 de julho, apenas com carros estacionados, às 11 h desta quarta-feira de greve

poucos artesãos trabalhando no dia 1 de setembro de 2010

Em dias normais, essa ilha da avenida 24 de julho fica tomada de artesãos que expõem seus trabalhos à venda

O comércio na rua Mártires de Mueda em dia de greve

Com a greve, não abriram os quiosques da rua de casa, onde se compra pão, leite, refrescos, crédito de celular, entre outros

Acompanhe as notícias que o Eduardo Castro está produzindo sobre o assunto para a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), pelo ElefanteNews.

Também há registros no Jornal Notícias e no O País.

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7 ComentáriosDeixe um comentário

  1. […] Após a greve geral de setembro de 2010 no país, ele lançou a música Povo no Poder, que tem uma letra forte e corajosa. Quem se lembra dos acontecimentos de setembro de 2010, da tensão por aqui, há de compreender a importância de ter um artista a mostrar ao povo sua própria força. Se não conhece essa história, veja o post Greve de ninguém. […]

  2. […] As medidas de austeridade e de redução de custo de vida — tomadas após as manifestações de um e dois de setembro de 2010 — continuam até março de 2011. No entanto, análise do Banco de Moçambique conclui que foram […]

  3. […] desse mês de setembro, vivemos cenas de violência e conturbação em Moçambique, devido a uma greve-protesto contra o aumento dos preços de serviços e bens essenciais, como energia elétrica, combustível e […]

  4. […] chegaram mais mensagens de ninguém A greve deflagrada nos primeiros dias de setembro em Moçambique por meio de mensagens de texto nos celuares […]

  5. […] dos produtos de primeira necessidade em Moçambique, no dia 1 de setembro de 2010, observei aqui e aqui, o quanto acho estranho e perigoso a greve-protesto ter sido deflagrada por mensagens de […]

  6. […] de Moçambique e a Força de Intervenção Rápida. Aparentemente, houve menos manifestações que ontem ou, pelo menos, foram detidas mais rapidamente, devido ao maior efetivo policial nas ruas. Mas, o […]

  7. Comentei nas matérias do Eduardo sobre o espanto que me causou uma manifestação organizada por SMS e mais ainda saber da presença de crianças! Como você escreveu muitíssimo bem, quando não há comando as coisas desgovernam mesmoooOooo porque greves e manifestações jão são tensas quando planejadas e discutidas em reuniões e assembléias, imagina uma situação de caos sem o comando de ninguém? Oxalá amanhã nenhum celular receba SMS e a normalidade volte às ruas de Maputo!!!
    Beijos
    Lucia Agapito


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