O anjo branco

Com 678 páginas, divididas em três partes (Paraíso, Purgatório e Inferno), o livro o Anjo Branco (editora Gradiva) é daqueles nos quais um capítulo chama o outro e quando a história acaba o leitor pede mais.

O autor José Rodriges dos Santos conta a história de seu pai, um médico que não escolhia pacientes, nem tratava melhor ou pior a nenhum deles (branco, negro, doutor, guerrilheiro, soldado, capitão, rico, pobre…). Ação difícil de ser colocada em prática nos anos de guerra pela libertação em Moçambique.

A história mostra o sentimento humanitário que o médico carregava e que deveria estar dentro de todos os que exercem a medicina. Só alguém com esse sentimento acima de tudo teria sido capaz de criar o Serviço Médico Aéreo na distante província de Tete, na colônia Moçambique, em meados do século XX.

Romance baseado em fatos reais, boa parte do livro se passa em Portugal, do nascimento do médico em Penafiel até sua formatura no Porto. Na seqüência, mostra o trabalho do médico em Moçambique, na década de 1960, primeiro em Xai Xai, depois em Tete. O ápice da história é o massacre de Wiriyamu.

O livro nos faz refletir sobre como o exército português conseguiu fazer com que os portugueses que viviam nas cidades em Moçambique ficassem alheios por muito tempo à guerra que acontecia no país. Sempre acreditando que as manifestações anticolonialistas seriam controladas e não passariam disso: manifestações. Triste é ver no fim do livro com que métodos o exército pretendia controlar a guerrilha…

Mas, para além da descrição histórica de um dos fatos mais importantes da guerra da independência em Moçambique, que foi o massacre de Wiriyamu, todo o cenário político, social e econômico presente no livro é de grande valia para o leitor, desde a vida em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial até o cotidiano dos portugueses que viviam nas colônias africanas.

Em entrevista ao Jornal de Notícias o autor afirma que quis “escrever um romance como nunca tinha sido escrito sobre a guerra colonial e os portugueses em África”. Parece que conseguiu. E da melhor forma.

Para quem está em Moçambique, a história do anjo ensina sobre o passado, ajuda a compreender o presente e faz refletir sobre o futuro. Para quem não está, é uma forma de chegar mais perto.

O Anjo Branco pode ser encontrado em livrarias de Portugal por cerca de € 24,00 ou de Moçambique por cerca de MT 1.400,00. No Brasil, encontrei na Livraria Cultura online, por R$ 77,65.

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Veja aqui a sinopse do livro.

Leia mais sobre a obra no blog da Vania, no Uma biblioteca aberta e no Sugestão de Leitura.

E eu reclamava da livraria Cultura…

Há algumas situações que, de tão ridículas, chegam a ser engraçadas. Aqui em Moçambique as pessoas são muito desconfiadas das outras. Especialmente, os patrões de seus empregados. Para os patrões, todo empregado desvia materiais de suas empresas. Mas os comerciantes também acham que todo cliente está interessado em levar mercadoria sem pagar.

Isso faz com que, por exemplo, nos supermercados, em cada gôndola haja um funcionário que fica em pé apenas olhando os clientes fazerem compras. Eles ficam fiscalizando se não vai nada no bolso ou na bolsa do cliente.

Acredito que gastem mais em pessoas para ficarem olhando os outros do que se houvesse aqui e ali um desvio. Mas, pelo menos, estão gerando emprego. Um emprego bastante desconfortável, eu penso, mas que dá sustento à família de forma honesta e isso é importante.

Só que chega uma hora que você se sente sufocado. Toda vez que vai a um mercado menor tem um funcionário que “gentilmente” carrega sua sacola de compras e anda feito sombra com você no interior da loja. Na verdade, está a controlar que nada será desviado. Nos mercados maiores há os fiscais de gôndola, que ficam nos corredores entre duas gôndolas, a observar todo mundo, como já falei. Para completar, quando terminamos a compra, pagamos no caixa e, na saída, temos que mostrar a nota para um segurança que fica na porta, apenas para verificar se você levou só o que está na lista. Ele olha aquele carrinho com mais de dez sacolas, com duzentos itens, e decide, em três segundos, se está tudo certo. Então, ele faz um rasgo pequeno na nota e você pode sair.

O rasgo pequeno, para quem não percebeu, é para não ter perigo de você ser muito esperto e entrar de na loja de novo, encher o carrinho com os mesmos itens e tentar sair sem passar pelo caixa, apresentando a mesma nota.

O engraçado dessa situação no final da compra é que, às vezes, ou não explicam muito bem qual a função do guarda na contratação ou ele, sendo um honesto inveterado, não resiste a fazer a verificação também em favor do cliente: “aqui na nota a sra. pagou duas latas de óleo, só vejo uma”. Toca o cliente a remexer nas sacolinhas e achar a outra lata de óleo.

Outra coisa que acontece é ser barrado quando você carrega uma bolsa grande, dessas tipo saco mesmo. Ao entrar na loja tem que deixar no guarda-volumes. Mas eu sempre acredito que quem desconfia demais dos outros é porque, quando tem chance, faz coisa errada, desvia dinheiro, furta. Porque se você é genuinamente honesto, nem pensa que naquela circunstância alguém poderia fazer algo errado. Então, como eu vou deixar minha bolsa no guarda-volume de um lugar que tem toda essa desconfiança de seus clientes?

guarda na porta do HorizonFaz alguns dias eu fui entrar no supermercado Horizon com uma dessas bolsas e o guarda pediu para deixá-la no guarda-volumes na frente da loja. Eu disse que não deixaria, porque era bolsa, não era sacola e havia minha carteira lá, meus pertences. Ele argumentou que eu poderia pegar a carteira, mas tinha que deixar a bolsa. No entanto, eu pensei rapidamente em tudo que estava na bolsa: máquina fotográfica, celular, nécessaire, óculos de sol, óculos de grau, chaves, etc. etc. etc. Tudo era importante para mim e eu não deixaria nas mãos de uma pessoa tão desconfiada. Afinal, se ele desconfia que eu faça é porque ele faria. Ou eu ia ficar andando na loja com tudo isso nas mãos? Não entrei na loja, não fiz a compra.

Então, eu lembrei que deixei de comprar na livraria Cultura do Casa Park, em Brasília, porque lá havia um sujeito pago para ficar na porta, do lado de fora da loja, a olhar para quem saía, analisando se tinha cara de “ter feito a loja”. Aquela presença me incomodava tanto que eu preferia não entrar na loja, mesmo tendo muita coisa de meu interesse lá. Se eu ficar incomodada a esse ponto agora, não vou poder comprar mais nada, porque aqui, a regra é acharem que você entra sempre pensando em furtar.